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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Explicando o inexplicável

Tenho uma profissão que, por assim dizer, não domina as conversas na hora do almoço. Os holofotes normalmente caem sobre médicos ou advogados, cujos percalços são extensamente glorificados e/ou demonizados em tudo que é tipo de mídia e bate papo. Você não vai ver um seriado rivalizando com ER ou Law & Order sobre o dia-a-dia de um engenheiro batendo de frente com várias gangues barra pesada. Muito antes disso, discute-se a vida de presidiários, policiais, psicopatas ou teenagers acéfalas.

Mas como eu trabalho embarcado na África, coisa esta que por si só desperta a atenção, as pessoas passam do inicial desinteresse pela engenharia e perguntam: mas o que você faz lá mesmo? Olhares brilhando de curiosidade, plateia presa no gancho esperando a explicação. Eles querem coisa no nível Indiana Jones, que transforma uma profissão chata toda vida numa panaceia tresloucada.

Pronto. Começo a jogar toda a minha didática, sorrisos e carisma no que sei ser um assunto delicado. Conheço o terreno frágil da atenção humana avessa a abstrações geométricas e grandezas matemáticas. Passados quinze segundos em que menciono coisas como flanges, tubulações e soldas, normalmente o que se segue é: “Ah... legal... interessante... entendi. Então tá então”. Ninguém entendeu e ficou por isso mesmo.

Mas sou brasileiro e não desisto nunca, então tentarei através do blog explicar o inexplicável: o que diabos eu faço na África!

Participo de operações em alto mar que instalam os lindos e maravilhosos dutos que levam petróleo das plataformas para terra firme. Esses dutos (tá, pode falar cano se quiser), ficam lá no fundo do mar junto com os peixinhos, e levam um montão, mas um montão mesmo, de petróleo e gás. Mas vem cá, como o tubo faz pra parar lá embaixo? A gente não o joga na água e vê no que dá; nada disso. Com muito cuidado a gente vai soldando tubo atrás de tubo e vai lançando direitinho na água até chegar lá embaixo. Quer ver como é? Saca só:

Um dia desses, devido ao ócio e ao espírito de porco inerentes à raça humana, você subiu no alto de um prédio com um monte de tubos de PVC. Sua ideia era a seguinte: ir conectando um tubo de PVC no outro até que ele chegasse na rua lá embaixo.


O que você pretendia alcançar com isso? Vá saber, a ideia foi sua, não minha. Tem dois jeitos de fazer isso:
  1. Segurando o cano na vertical com as mãos esticadas pra fora do parapeito. Assim, você vai acrescentando mais secções ate que ele chega na rua;
  2. Segurando o cano na horizontal com as duas mãos antes do parapeito. Você faz a mesma coisa, sendo que o cano fica apoiado no parapeito e faz uma baita curva ate ficar na vertical e ir lá pra baixo.
Até aí tudo bem? Bom, o negócio é que seu cano é frágil (huum, olha o duplo sentido pintando), então na segunda opção você tem que dar um jeito de suavizar a descida pro cano não partir no meio. O que você faz? Prende uma rampinha no parapeito, poxa vida (a gente chama de stinger)! Assim não fica aquela quina machucando o coitado.

Agora tem uma mágica acontecendo no prédio e assim, do nada, ele começou a andar! Uau, antes de ter a ideia de lançar os canos parece que rolaram uns “coquetéis” brabos na ideia.

Imagina então que o cano tá lá embaixo e o prédio andando. Tem que manter o ritmo hein! Pra cada cano que você acrescenta o prédio anda um pouquinho. A trilha de canos vai aumentando na rua até que você finalmente enche o saco. Podia estar pegando alguém, jogando PS3, lendo uma revista, enfim... são pensamentos que lhe ocorrem. Aí chega a outra sacada: quero largar essa bodega, mas se eu simplesmente soltar a mão, a droga do cano vai quebrar todo... Inferno! Fazer o que? Tem que prender uma corda na ponta e ir soltando até o cano pousar na rua. Mas não esquece que o prédio tem que andar enquanto você solta, senão fica a maior macarronada na calçada e dá merda com a chefia. Pronto, você acabou de fazer o que chamamos de abandono da tubulação. Se você quiser pegar o cano de novo pra continuar brincando no dia seguinte, é só fazer o contrário.

Olha, em linhas gerais, é assim que o navio funciona, só que ao invés de canos de PVC a gente usa tubos de aço bem maiores e mais pesados. Ao invés de segurar os dutos na raça, a gente usa os chamados tensionadores, e pra encaixar um duto no outro a gente solda o bagulho. Lembra das duas opções pra lançar o cano na rua? Na primeira, o lançamento é chamado de J-lay (lançamento em J), por causa do formato do duto quando ele toca no chão. Hein, hein? Se liga que o duto estava na vertical e depois fez uma curva quando bateu no chão. Esse é o J. A segunda opção é chamada S-Lay (lançamento em S) pelo mesmo motivo. Não tá vendo o cano saindo da rampa e chegando lá na rua fazendo duas curvas que lembram um S? Poxa, não é tão difícil assim, deixa a preguiça de lado um instante e abstrai aí.

Bom, acho que era isso. Então tá então.

5 comentários:

Bel Butcher disse...

Pô, moleza!

Mulherzices disse...

aaah...agora entendi tudo!!!hehehehe... Se cuida!!

Renata Jamus disse...

Muito bom!!!
Eu daria MB nesse texto!


Já posso trabalhar!
Gostei do lançamento em S...mais rebuscado!

Posso ir...
Gosto de Plataformas...

Tânia disse...

Eu tenho uma pergunta: no fim da história o lado do cano que está na sua mão, no alto do prédio, você vai precisar ligá-lo a alguma coisa, não? Afinal, o canos não vão ficar simplemnte abandonados lá na rua. Como é isso? Vocês vão conectá-lo a uma tubulação qu já está também no fundo do mar?

Rafael disse...

Com o predio parado e o duto largado na rua, vc volta a ligar mais tubos do alto do predio. Quando esse duto, que ta na vertical, chegar perto do nivel da rua vc para tudo e manda alguem descer com um pedacinho de duto na mao pra fechar a conexao (spool de fechamento). No nosso caso, a gente manda mergulhadores ou veiculos operados remotamente (ROV). Esse duto vertical chama-se “riser”.